Crédito público para investimento estrangeiro

A Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962, disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior. No capítulo relativo “às disposições referentes ao crédito”, esse diploma estabeleceu que o Tesouro Nacional e as entidades oficiais de crédito público da União e Estados – inclusive sociedades de economia mista por eles controladas – só poderão garantir empréstimos, créditos ou financiamentos obtidos no exterior (por empresas cuja maioria de capital com direito a voto pertença a pessoas não residentes no País) mediante autorização em decreto do Poder Executivo, como diz literalmente o art. 37.

Por sua vez, o legislador, no art. 39 da indigitada Lei, estabeleceu preceito segundo o qual as entidades citadas no art. 37 só poderão conceder empréstimos, créditos ou financiamentos para novas inversões a serem realizadas no ativo fixo de empresa cuja maioria de capital, com direito a voto, pertença a pessoas não residentes no País. Isso quando elas estiverem aplicadas em setores de atividades e regiões econômicas de alto interesse nacional, definidos e enumerados em decreto do Poder Executivo, mediante audiência do Conselho Nacional de Economia. Usando da prerrogativa supra, o Chefe do Executivo Nacional editou o Decreto nº 2.233, de 23 de maio de 1997, dispondo sobre os setores das atividades econômicas excluídas das restrições mencionadas no art. 39 da Lei nº 4.131/1962.

Sem muito alarde, o presidente Michel Temer, por meio do Decreto nº 8.957, de 16 de janeiro de 2017, introduziu modificações no rol das atividades econômicas excluídas das vedações do art. 39 da Lei nº 4.131/1962, que vinham elencadas no art. 1º do Decreto nº 2.233/1997. A redação primitiva do alterado art. 1º enumerava basicamente dois setores, a saber: (i) o da infraestrutura, em determinados segmentos; e (ii) o dos complexos industriais, em algumas partes. Além de processar o aumento dos segmentos dentro de cada um desses dois setores, Temer culminou por ampliar os próprios setores abrangidos pelas normas.

Incluíram-se os setores relacionados com: turismo, arrendamento mercantil de bens de capital, serviços de educação, serviços de eficiência energética e comércio. Não é de hoje que a rotulada abertura da economia ao capital estrangeiro e a permissibilidade do acesso a empréstimos por empresas de capital estrangeiro têm gerado calorosas discussões. Certamente, o contido no Decreto nº 8.957/2017, vai inflamar o debate entre os que veem na medida uma forma de implementar a combalida economia e aqueles que enxergam nela um indevido acesso a setores da atividade econômica em detrimento das empresas nacionais. Na história do pensamento econômico, é cíclico o embate entre os defensores do denominado “princípio liberal de livre comércio” e os adeptos da adoção de medidas protecionistas.

Sem interesse em avançar nos meandros de qualquer dessas correntes, ouso apenas ponderar que poderiam ser arrolados pontos positivos e negativos da inescondível ampliação do leque de setores tidos como de “alto interesse nacional”, conforme seja o enfoque que se dê ao tema. Com os olhos voltados para o chamado protecionismo, pode-se dizer que, permitir o acesso ao crédito público pelas empresas de capital estrangeiro em setores como o de arrendamento mercantil de bens de capital, de serviços de educação e, especialmente, o de comércio, é de certa maneira penalizar as empresas nacionais. Os seus já minguados recursos ficarão ainda mais escassos por se imaginar que eles sejam consumidos pelas empresas estrangeiras. Nesse plano, alguns visualizam mais uma benesse indevida.

Por outro ângulo, a ampliação dos setores pode levar ao incremento dessas atividades com a atração de investidores estrangeiros, fazendo com que esses segmentos econômicos saiam do sufoco. No que tange aos aspectos legais da medida, não me parece ser possível reputá-la como contrária à ordem jurídica. Bem de se ver que, consta expressamente da parte final do art. 39 da Lei nº 4.131/1962, a atribuição de competência ao Poder Executivo para, via decreto, definir e enumerar os setores de atividades e regiões econômicas de alto interesse nacional. Entrementes, como todo e qualquer conceito jurídico indeterminado, a expressão “alto interesse nacional”, por ser vaga, possibilita uma interpretação ampla.

A amplitude conceitual culmina em deixar ao sabor de quem a interpreta definir seus parâmetros conforme as convicções do intérprete. Frederico do Valle Abreu enxerga que a vaguidade semântica existente em certa norma com a finalidade de que ela – a norma – permaneça, ao ser aplicada, sempre atual e correspondente aos anseios da sociedade nos vários momentos históricos em que a lei é interpretada e aplicada. É certo, então, que objeções podem ser levantadas quanto à ampliação dos segmentos de atividades feita pelo Decreto nº 8.957/2017, calcadas nas mais diversas interpretações da “finalidade” ou do “intuito” da norma.

Sobreleva considerar que, no arcabouço da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, a possibilidade de controle jurídico sobre os mesmos existe, mas este se dá apenas junto ao núcleo do conceito, não junto a zona periférica. Afinal, recusar a possibilidade de controle sobre esses seria convertê-los em algo despropositado, seria o mesmo que manifestamente não aplicar a lei que os haja formulado. Admitir, no entanto, o controle absoluto como se estivéssemos perante uma definição também seria desvirtuar os limites do que foi positivado. Ou seja, diante de qualquer conceito jurídico indeterminado, apesar de sua indeterminação, há sempre uma zona de certeza negativa (o que não é) e positiva (o que é) onde é possível o controle para afastar as interpretações e aplicações incorretas, embora sempre permaneça uma zona de penumbra, de incerteza, que é insindicável.

Arremato, anotando que, a meu juízo, as modificações feitas pelo Decreto nº 8.957/17 no Decreto nº 2.233/1997 não espelham conduta voltada a atribuir uma maior segurança jurídica às relações entre as partes envolvidas, embora o detalhamento feito em determinados segmentos possa ser visto como elemento capaz de trazer maior certeza. Afinal, se não evita tergiversações sobre a abrangência, ao menos a delimita melhor. Exemplo disso, colhe-se da alínea “d” do inciso I do art. 1º do Decreto nº 2.233/1997 onde se qualificou o “saneamento ambiental” (redação primitiva) agregando ao texto as palavras “inclusive de saneamento básico e gestão de resíduos sólidos” (inserção feita pelo Decreto nº 8.957/17), o que tornou mais claros os segmentos do setor atingidos pela norma.

Encerro essas breves considerações, enfatizando que vejo o edito sob mira como representativo de tentativa de indução a uma nova política econômica, servindo o mesmo apenas como mero instrumento jurídico de afastamento de restrições já que, franqueando-se novos setores de atividades, julgou-se como possível atrair outras empresas. Pairam no ar as indagações: a ampliação de setores trazida pelo “Decreto

Temer” realmente se mostrará eficaz para o fim propalado? Os investidores estrangeiros ficarão realmente atraídos? Com a palavra, os senhores economistas…